Gastronomia Hospitalar


Pode comemorar

Chega de tortura. O saboroso mundo da gastronomia invadiu hospitais e spas


Por Leticia Rocha

Uma breve leitura no cardápio e algumas sugestões saltam aos olhos: filé mignon orgânico grelhado com ervas, salmão grelhado com raspas de limão ou creme de mandioquinha com carne-seca? Para sobremesa, torta-mousse de chocolate, manjar de coco com calda de morango ou creme de queijo com calda de frutas vermelhas? O menu poderia ser de qualquer bom restaurante, mas é de um hospital. Isso mesmo. Essas são as opções oferecidas aos pacientes da unidade Anália Franco do São Luiz, centro médico de referência em São Paulo, SP.

Para quem ainda acha que lugar de chef é no restaurante, eis a prova das mil faces para um profissional de gastronomia. Sim, o mundo gourmet alcançou um território que até então carregava a fama de servir comida sem sal, sem açúcar, sem graça. Algo parecido vive o segmento de spas de emagrecimento, onde até pouco tempo reinava a lógica que fazer regime significa privar-se do prazer de comer bem.

Incluir sabor em dietas de emagrecimento ou de saúde é uma tendência mundial, e uma realidade no mercado brasileiro. A mudança que se vê nos cardápios de spas e hospitais do país teve início com uma remodelação dos papéis na cozinha. O nutricionista, acostumado a trabalhar diretamente com a equipe de cozinheiros, passou a atuar ao lado de um chef. “Antes de criar preciso do aval nutricional, que é o meu grande termômetro do que é e do que não é permitido em uma dieta”, diz Cézar Cassiano, chef do Grupo Noah Gastronomia, responsável pelos cardápios do São Luiz.

Com base no tripé saúde, gastronomia e bem-estar, técnicas modernas de cozinha se unem a alimentos funcionais – que, além do teor nutritivo, ajudam na prevenção e tratamento de doenças. “O desafio é tornar a alimentação agradável, bem apresentada, saborosa, acolhedora e com os conceitos da culinária contemporânea”, diz Cristiane Tonato, nutricionista do São Luiz.

Cada dieta leva em conta a restrição alimentar: sem sal, sem gordura, sem açúcar, pastosa, líquida ou hipossódica – ao todo são 35 modelos. “O esforço é proporcionar conforto, como se o paciente fosse um cliente de restaurante”, completa Cristiane.
Nessa hora, entra o talento de chef. “Aproveito o poder de um produto fresco e ganho com a textura”, diz Cézar. “Abuso das ervas que, além de temperar, ajudam no aroma e no aspecto da comida – um prato colorido é vital.” O chef tem até uma horta própria, ao lado da cozinha do hospital.

Para Gustavo Torres, do grupo GRSA – empresa de alimentação, que executa o cardápio do hospital Sírio-Libanês, também na capital paulista, esse é um campo de trabalho em que os desafios nunca terminam. Um exemplo é a dieta pastosa, a mais temida dos chefs. “Ela é saborosa, mas o problema é o visual”, explica. “É aí que entra em ação nossa veia de artista, com a montagem e a decoração.” Louças e talheres refinados ajudam. E já que não dá para contar com o ritual da mesa, investe-se em uma bandeja charmosa.

Muito complicado? Não para quem mergulha nesse campo de trabalho. A chef Ana Zambelli que o diga. Aluna do último ano do curso de Nutrição, desistiu da rotina de chef de restaurante e resolveu unir as duas profissiões num estudo acadêmico, que virou tema de sua monografia. Pela complexidade, escolheu pacientes que enfrentam a quimioterapia. “Depois de algumas semanas de tratamento, o corpo fica frágil, estouram feridinhas na boca e fica difícil comer”, explica. Para variar o cardápio de sopas e caldos, Ana pensou em receitas cremosas, como a polenta. “Aí vêm agravantes: não pode ser muito quente, nem ter o molho ácido... é um exercício de criação.”

Ditadura das calorias

Na mesma linha de frescor, cor e sabor estão os novos cardápios de spa. No Oásis Hotel & Spa, instalado em Gravatá, no agreste de Pernambuco, a megaestrutura da antiga fazenda dá aos hóspedes o luxo de consumir quase todos os ingredientes cultivados ou criados ali. “Só não temos ainda peixes e frutos do mar”, conta a proprietária Ana Cláudia de Araújo. É ela também a autora dos cardápios, mesmo sem ser (oficialmente) chef de cozinha, nem nutricionista.

Química por formação, com especialização em produção de alimentos e pós-gradução em nutrição humana e saúde, Ana Cláudia trabalha com a dieta do IG (índice glicêmico). “É um conceito diferente que, em vez de só contar as calorias, prioriza o lado químico dos alimentos”, explica. Em linhas gerais, é melhor comer chocolate (salvo as quantidades indicadas e com 70% de cacau) do que melancia.

Calma, isso não é conversa fiada. A lógica está na velocidade de absorção da glicose. “Com o chocolate, que tem IG baixo, o açúcar entra lentamente no sangue e dá saciedade por horas. Já com a melancia, do mesmo jeito que a glicose eleva rapidamente, cai também. E o apetite volta logo”, explica Ana Cláudia. “É o futuro das dietas, o caminho para o peso ideal porque não sacrifica o prazer de comer.”

Com as combinações corretas, a ajudinha de muitas ervas e o cozimento certo, os hóspedes do spa têm pequenas porções de deleites até então proibidos em regimes. Entre os pratos servidos estão risoto de bacalhau, sopa de feijão, conciglione de camarão, sanduíche de lagosta, cheesecake e crêpe de goiaba com calda de chocolate. Tudo isso com serviço de restaurante: nada de refeições previamente decididas. Tem cardápio e é o hóspede quem decide o que vai comer.

No Mantra Resort Spa, localizado em Punta del Este, o agitado balneário uruguaio, personalização é a palavra de ordem. Ao chegar, o cliente passa por uma entrevista, conta suas preferências alimentares. E das panelas do chef Patrick Gutíerrez, com supervisão nutricional, saem mexilhões em cama de espinafre, carpaccio de pepino com atum e alcaparras com molho de limão, badejo com alho-poró e molho de abobrinha, espuma de morango com creme e torre de maçã fatiada com sorvete e compota de abacaxi. “Quem vem aqui já tem de se preocupar com exercício e com a auto-estima, pelo menos tem de comer o que gosta”, diz Patrick. “E eu faço o que gosto: quebro a cabeça para tornar os seus alimentos preferidos numa receita leve.”

Bons ingredientes e um toque de Midas: eis o caminho da nova cozinha funcional. É melhor não precisar, mas se os acasos da vida lhe levarem ao hospital ou ao spa, pelo menos na hora da comida, os momentos de tortura parecerão contados.

Fotos André Peniche e António Rodrigues / Produção Cristina Esquilante


Fonte:http://prazeresdamesa.uol.com.br/exibirMateria/85/pode-comemorar

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