Cozinha caiçara:
uma arte à beira da extinção
Mary Hellen Botelho e Bianca Marchetti

“A culinária caiçara está morrendo”, alerta Luciana Marchetti, chef e professora de Culinária Caiçara do curso de Gastronomia da Unimonte, em Santos.
A afirmação se baseia em uma tendência mundial, segundo ela. "A culinária de nossos ancestrais está sendo substituída por outras influências e no âmbito acadêmico, quase não existem pesquisas e trabalhos sobre o assunto", lamenta a chef.
Como os índios repassavam suas tradições através da fala e os desbravadores registravam somente o que lhes era conveniente, muito da versão nativa se perdeu no tempo.
Entretanto, podemos recontar a história da colonização brasileira de diferentes maneiras e uma delas é a partir dos hábitos alimentares. Dos portugueses foram herdados a cana-de-açúcar, os temperos e os ovos; dos africanos, a banana; e da Espanha, vieram os embutidos.
A eles juntaram-se a farinha de mandioca, o pé de moleque, a tapioca, o tucupi (caldo de mandioca), o melaço, o caiuim (bebida à base de mandioca), a feijoada e a galinha caipira, entre outros.
A carne de caça, a mandioca e os peixes já não são mais os principais alimentos dos povos caiçaras, localizados entre o litoral do Rio de Janeiro e o norte do Paraná. Hoje, é muito fácil notar a presença forte de cozinhas internacionais, como a italiana, a oriental, ou a árabe.
A professora explica que a culinária não é muito divulgada e como há poucos registros históricos, acaba sendo esquecida. “Em Santos, por exemplo, os restaurantes não têm mais essa característica”, afirma.
Entre os fatores apontados por Luciana, estão as influências que os jovens recebem de outras culturas, através da televisão e das redes de fast food. “Além de estarmos vivendo a globalização das culturas, ainda há o risco de não ser comercialmente viável ter um estabelecimento típico caiçara”.
A confusão que se faz entre o que é caiçara e o que é nordestino, por exemplo, também reforça a fragilidade desta culinária. “Isso é muito comum, justamente por causa do processo de colonização do Brasil. Os colonizadores atracavam no litoral e interferiam diretamente no cotidiano das comunidades que ali viviam”.

Testemunhas

Algumas comunidades pesqueiras, tribos indígenas e seus descendentes, ainda resistem às misturas e tentam manter a tradição.
Em Santos existe uma comunidade remanescente que vive na Ilha Diana, a cerca de 27 quilômetros do Centro Histórico. Para chegar lá, é preciso pegar uma barca atrás da Alfândega de Santos, próximo à Praça da República.
As casas são simples e todos se conhecem. Há apenas um estabelecimento, que funciona como mercearia, lanchonete, bar e restaurante. Aos sábados, o prato principal é sarapatel e galo assado.
Alguns tipos de peixes e frutos do mar são artigos de luxo para quem não vive lá, pois são vendidos no mercado por um preço alto. Pratos à base desses ingredientes estão entre os mais caros nos restaurantes, um dos fatores apontados como prejudiciais à cultura caiçara.
Para os pescadores tradicionais e moradores da Ilha Diana, esses são os alimentos do dia-a-dia.
Antonia Bitencourtt de Souza, conhecida por todos como dona Dina, ajudou a fundar a comunidade. Aos 93 anos, ela cozinha para a família e convidados. “Minha mesa é sempre farta. Há dois, três, quatro pratos diferentes”, explica.


Com quase cem anos, dona Dina tenta mater a cultura caiçara viva

O peixe Azul Marinho de dona Dina é feito com banana madura. Ela cozinha a fruta com casca para que o sabor seja conservado. A ostra e o camarão ensopados, a sopa de camarão e o marisco com abóbora também estão no cardápio de sua preferência. As sobremesas mais freqüentes em sua mesa são o bolo de mandioca e os doces de abóbora e limão galego.
Dona Dina lamenta que hoje as mães não ensinem as filhas a cozinhar. “A tradição não é mais passada para a nova geração. Por isso essa cultura está acabando”, completa. Ela aprendeu a arte da cozinha caiçara com sua mãe e passou seus conhecimentos para a filha Celina Aires, 62 anos.

Literatura

Lançado em janeiro do ano passado pela editora Dialeto Latin American Documentary, o livro Culinária Caiçara - o sabor entre a serra e o mar, organizado pela chef Ana Bueno, do restaurante Banana da Terra (Paraty, RJ), em conjunto com o antropólogo Antonio Carlos Diegues e o fotógrafo Vito D'Alessio, é um dos poucos registros da culinária primária dos povos do litoral.
Em um dos trechos, a obra ressalta que a simplicidade é que garante destaque a esse modo específico de cozinhar. “É nesta simplicidade que se encontra o grande diferencial da cozinha caiçara, um jeito genuíno de se entender a culinária. De fato, tudo que está relacionado ao caiçara está entre o encantamento e a controvérsia, mas é indiscutivelmente a primeira matriz genética brasileira”.
Apesar de estar quase se perdendo entre as demais tendências gastronômicas, os traços típicos caiçara ainda permanecem vivos nas receitas e nas mãos de cidadãos como a dona Dina.
Cabe a cada morador local, preservar esta cultura que demonstra uma marca importante da historia brasileira e valorizar o papel de destaque que a gastronomia caiçara tem dentro dos roteiros turísticos.
http://www.saborlitoral.com/materias.html

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